O Tribunal de Justiça da Bahia cancelou nesta sexta-feira (3) um show de Gusttavo Lima na cidade de Teolândia (BA). A prefeitura da cidade havia contratado o cantor pelo cachê de R$ 704 mil para se apresentar na Festa da Banana, comemoração tradicional da região.
A decisão veio após um pedido do Ministério Público, que questionou o gasto excessivo por uma cidade que, em dezembro, alegou não ter dinheiro para lidar com os efeitos de duas enchentes que deixaram moradores desabrigados e causaram grande destruição. À época, a prefeita da cidade, Maria Baitinga de Santana (Progressistas), pediu doações para moradores e recebeu R$ 1,14 milhão do governo federal.
Trata-se de mais um capítulo da polêmica instalada nas últimas semanas sobre os contratos milionários de cantores sertanejos com pequenas prefeituras pelo país, que inundou as redes sociais com pedidos de uma CPI do Sertanejo. Por trás desses shows, há um contexto complexo que envolve políticas culturais, relações com a política tradicional e o poderoso setor do agronegócio.
Confissão
Essa não foi a primeira vez que o nome de Gusttavo Lima apareceu no contexto. O Ministério Público do Rio de Janeiro abriu uma apuração sobre um contrato firmado pela prefeitura de Magé para a realização de um show na cidade. O MP de Roraima também investiga um show do cantor na cidade de São Luiz, que tem uma população de 8 mil habitantes, por R$ 800 mil. A exposição dos casos fez com que a administração municipal de Conceição do Mato Dentro (MG) cancelasse um show do cantor que custaria R$ 1,2 milhão e seria realizado no dia 20 de junho.
A atual polêmica teve início quando o cantor sertanejo Zé Neto, que faz dupla com Cristiano, atacou a cantora Anitta em um show na cidade de Sorriso, no Mato Grosso, em 13 de maio. Na ocasião, ele disse que sua carreira não dependia da Lei Rouanet e emendou: “Nosso cachê quem paga é o povo”. De forma torta, foi quase uma confissão do artista, já que os fatos que se seguiram mostraram diversos nomes famosos do mundo sertanejo recebendo cachês polpudos de prefeituras.
Como reportou o Brasil de Fato, um levantamento feito pelo UOL dois dias depois mostrava que o show da própria dupla de Zé Neto havia custado R$ 400 mil aos cofres públicos. Junto com o dinheiro destinado a outros shows no mesmo evento, o valor total chegou a R$ 1 milhão, segundo dados do Portal da Transparência.
Em vista deste e de outros gastos, o Ministério Público de Mato Grosso abriu um procedimento na quarta-feira (1º) para apurar a contratação feita por 24 prefeituras do estado de artistas, a maioria, de música sertaneja, para eventos comemorativos das cidades.
Recursos pouco transparentes
Alvo constante de bolsonaristas, que disseminam desinformação sobre seus mecanismos, a Lei Rouanet capta recursos por meio de renúncia fiscal. As empresas são autorizadas a investirem até 4% dos valores devidos em tributos em projetos culturais. Já quando prefeituras fazem contratações de shows, tanto as exigências legais quanto a fiscalização da aplicação de recursos são mais frouxas.
“A Lei Rouanet é transparente. Tem análise de projeto, parecer, acompanhamento da execução e prestação de contas com apresentação de notas fiscais. No caso da contratação direta, não há nenhum controle social. Não sabemos como o artista remunera seus funcionários, quanto paga para o iluminador, o figurinista etc”, explica a produtora e especialista em política cultural Inti Queiroz, em entrevista ao jornal Extra.
O ex-servidor da Secretaria de Estado da Cultura da Paraíba Antônio Sobreira também explica em artigo publicado no Brasil de Fato-PB que a legislação estabelece limites para o valor investido por meio da Lei Rouanet, o que não acontece nos contratos firmados pelas prefeituras. “Até 2019, se podia pagar cachê para um cantor até R$ 35.000 pela Lei Rouanet, que vem sendo reduzido, até que em 2022 o cachê individual para cantor e cantora foi reduzido para R$ 3.500. Por assim dizer, o cachê de R$ 35.000 é muito inferior aos que os sertanejos recebem e hoje nenhum deles concorreria por conta dessa limitação”, aponta.
“Tanto a Lei Rouanet como uma prefeitura pagam shows com recursos de impostos. A diferença é que a prefeitura usa para marketing político, em geral torram 50% ou mais do orçamento para Difusão em Cultura e abandonam a cidade para ações culturais no restante do ano”, critica Sobreira.
Estratégia de imagem
Um ponto central na discussão é a escassez de recursos para a área de cultura, em especial em nível municipal. “A gente não tem na maioria das prefeituras uma política pública de cultura, um programa do setor. Em geral, os poucos recursos da área são utilizados em grandes eventos, que têm uma característica muito mais de propaganda do que exatamente de democratizar o acesso à cultura ou mesmo dar possibilidade de que as pessoas possam desenvolver a sua própria cultura”, afirma a psicóloga e integrante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) Ana Chã, autora do livro Agronegócio e Indústria Cultural – Estratégias das empresas para a construção da hegemonia.
Ela explica que um caminho comum para essas prefeituras driblarem a falta de dinheiro é o desenvolvimento de parcerias com produtoras particulares que captam recursos por meio da Lei Rouanet. Assim, conseguem investimentos de empresas – no caso dos shows sertanejos, em especial do agronegócio. O problema do modelo é que as atividades acabam tendo que se submeter aos interesses das empresas em fazer “marketing cultural” nos territórios em que atuam.
Para Ana, essas relações entre o agronegócio e as duplas sertanejas não são casuais, mas envoltas em uma estratégia maior do setor em projetar uma imagem positiva para a sociedade. “Quando a gente fala da hegemonia do agronegócio. pode olhar para os recursos de crédito que eles têm do governo, para o peso de uma bancada ruralista, mas devemos cada vez mais observar também como eles constroem essa hegemonia a partir do lado ideológico e cultural”, explica.
“Há um investimento forte nessa propaganda e nessa construção de um imaginário positivo de que agro é tudo, agro é tech, agro é pop. Isso vem pela publicidade, mas também pelas novelas, pelas grandes feiras, pelos grandes ‘agro shows’. O investimento nessas duplas sertanejas vem dessa proposta mais geral de mostrar o agro como algo moderno, popular, massivo, que está em todo lugar “, conclui.
Esse investimento não é apenas na promoção dos grandes shows, mas na própria construção da popularidade dos cantores sertanejos. “Estes serem os artistas que mais tocam nas rádios e plataformas não é uma questão meramente de gosto das pessoas. Há um investimento pesado. Vou gostar daquilo que toca na rádio, daquilo que estou ouvindo todo dia. Isso não é de agora, vem de muito tempo, pelo menos duas décadas, embora tenha se fortalecido cada vez mais”, sustenta.
O elo com as pequenas prefeituras acontece quando estas transformam suas festas locais tradicionais em grandes shows, com patrocínio das empresas do agronegócio – como é o caso da Festa da Banana de Teolândia.
“E como esses cantores sertanejos todos passam a usufruir de grandes fortunas, eles também passam a fazer parte desse setor. A maioria desses cantores e duplas são também parte do agronegócio, possuem várias fazendas”, diz Ana. “Então a gente tem, por um lado, um investimento pesado nesse tipo de música para reforçar essa vocação do Brasil como um país do agronegócio. E, por outro lado, tem uma defesa do próprio agronegócio por esses cantores que também são parte do modelo eles mesmos”, analisa.
* Nicolau Soares