Mais de 2 mil armas foram registradas por CACs (categoria que reúne caçadores, atiradores e colecionadores) por dia, em média, entre setembro e novembro deste ano. O índice mais que dobrou na comparação com o período de janeiro a agosto, quando a média não chegava a 870 registros diários.
Por que isso é importante? O período coincide com a reta final do governo Jair Bolsonaro (PL) —em que ocorreram as eleições e a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A flexibilização das leis para porte e aquisição de armas era uma bandeira da campanha de Bolsonaro em 2018. O presidente eleito Lula já criticou o incentivo.
Nos últimos três meses, foram pelo menos 184 mil registros feitos no Sigma (Sistema de Gerenciamento Militar de Armas).
O que significa uma média mensal de 61,4 mil novas armas.
Até agosto, a média mensal de registros era de 26 mil.
O total de armas registradas chegou a 391,3 mil de janeiro até novembro, segundo dados do Exército obtidos pelo UOL por meio da LAI (Lei de Acesso à Informação). A resposta foi dada no último dia 30.
A coluna pediu dados por mês, mas, na resposta, a Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados informou que “não é possível realizar a extração”. Dados enviados em outra resposta no mês de setembro mostraram que, até agosto, eram 207 mil armas registradas neste ano.
No total, o Exército informou que existiam 1.731.295 armas de fogo registradas no Sigma até agosto.
Os números levam em conta a expedição de CRAFs (certificados de registro de arma de fogo) por CAC. O sistema, porém, não permite diferenciar o registro de arma nova ou renovação de registro de alguma já existente —armas podem ser transferidas entre acervos e podem ganhar novo registro.
As medidas para flexibilizar a legislação em relação ao armamento começaram no governo Michel Temer (MDB), de 2016 a 2018. Com a chegada de Bolsonaro à Presidência da República, foram ampliadas. Desde 2019, dez decretos e 14 portarias foram publicados dando novos regramentos à aquisição de armas e munições para os CACs.
“Deixou de ser uma questão de gostar de armas e criou-se a possibilidade do CAC sair de casa com a arma pronta para uso”, diz o policial federal Roberto Uchôa, que também é pesquisador de segurança pública e autor do livro “Armas para quem?”.
Até 2018, os limites de aquisição de armas para atiradores variava de acordo com seu grau de competição. Também havia limites de compra de 12 armas, 6 mil munições e 2 kg de pólvora por ano.
Agora, um atirador tem direito a ter até 60 armas (sendo 30 delas de uso restrito). Para cada arma, é possível comprar até mil munições por ano —no caso de atiradores, esse marco pode ser ampliado em cinco vezes, desde que haja autorização do Exército. A validade do registro aumentou de cinco para dez anos, e foi autorizado portar uma arma municiada nas ruas.
Bolsonaro deu acesso a armamentos mais pesados, tipos de armas que eram registradas nas Forças de Segurança e de Defesa, até então proibidas no Brasil, como fuzil semiautomático.”Ivan Marques, advogado e integrante do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública)
Pistolas estão substituindo revólveres. O perfil dessas armas, explica Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz, também mudou. “Um calibre 38 está sendo substituído por calibres 9mm ou .40, que são mais potentes”, afirma. “Vamos ter mais crimes com armas e a letalidade dos crimes aumenta, porque faz diferença estar com uma arma que dispara mais rapidamente”.
Com essa flexibilização, a ideia original de CAC foi modificada. Você tem essa regra que, em tese, era para quem está interessado em tiro esportivo e em caça, mas, na prática, virou um caminho mais fácil para todo mundo que quer andar armado.”Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz
“Isso explica o motivo de CAC passar de uma categoria desconhecida para uma categoria que hoje tem mais de um milhão de armas e 800 mil pessoas registradas no Exército, com controle muito frágil”, completa.
Atualmente, há mais de 2 mil clubes de tiro em atividade no Brasil, segundo o Exército. Praticamente a metade (1.006) foi fundada de janeiro de 2019 até maio de 2022, durante o governo de Bolsonaro.
Em agosto de 2021, após críticas por facilitar a compra de armas, o presidente disse a apoiadores que “tudo o que pode fazer por decreto, eu fiz”.
Algumas das mudanças são questionadas judicialmente e estão em análise no STF (Supremo Tribunal Federal), que tem julgamento parado na Corte após pedido de vista do ministro Nunes Marques.
Durante sua pesquisa na Uenf (Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro), o policial Uchôa traçou um perfil de quem é CAC no Brasil.
Podemos cravar que o CAC é um grupo masculino, branco, conservador, tinham uma adesão ao bolsonarismo muito grande, que se intensificou depois, se tornando um mito, e um grupo com renda alta, que começa a baixar. Somente 2% do público é negro.”Roberto Uchôa, policial federal e autor do livro “Armas para quem?”
A presença de mulheres nos clubes de tiros existe, mas sempre acompanhadas de homens. “Todas as mulheres eram esposas, irmãs ou filhas”, completa Uchôa.
Existem duas categorias distintas de registro de armas de fogo para civis:
A primeira é de posse e porte para autodefesa, controlada pela PF (Polícia Federal) –que também vem crescendo nos últimos anos. No caso, o órgão gerencia o Sinarm (Sistema Nacional de Armas).
A outra é uma categoria para atividades com armas, que são os CACs. O controle é feito pelo Exército, que gerencia o Sigma.
Cada uma das modalidades tem regramentos específicos, mas em nenhum deles é permitido registro de arma para defesa pessoal —o que é restrito ao sistema controlado pela PF e que é bem mais rigoroso no quesito de posse.
Uchôa diz que o caminho é mudar o controle e a fiscalização. “Precisamos acabar com essa confusão do controle híbrido. Não tem como ter uma instituição civil, como a Polícia Federal, fazendo o controle de um determinado setor e as Forças Armadas terem controle de outro setor e não se comunicarem”, argumenta.