É provável que, em alguns anos, evangélicos sejam a maioria da população. José Eustáquio Alves, doutor em demografia aposentado do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), projetou que isso aconteceria em 2032.
Se a democracia passar bem depois desta eleição, sem golpismos prósperos, teremos mais dois pleitos presidenciais até lá. Não é preciso dizer que a já expressiva polpa eleitoral desse bloco vai dar mais suco daqui para frente. Um refresco, claro, para o bolsonarismo.
Dá para cravar que Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ganhou esta eleição apesar dos evangélicos, e não com eles. Todas as pesquisas às vésperas do segundo turno mostravam uma ampla preferência do grupo pelo presidente Jair Bolsonaro (PL).
O peso da identidade religiosa fica mais evidente quando lembramos que a face média do crente é negra, pobre e feminina. Nichos que tendem a Lula, e mesmo assim a onda pró-Bolsonaro nos templos foi avassaladora. Neles, Lula é o demônio que vai trazer comunismo, aborto, drogas e toda a sorte de males aos olhos do povo evangélico. Não precisa ser verdade, precisa convencer. E a máquina bolsonarista é boa nisso.
Alguns dos pastores que assumiram a linha de frente contra o petismo reforçaram a tese da batalha espiritual, com um mal que por ora triunfou, após o anúncio da vitória lulista contra Bolsonaro.
André Valadão, o membro mais barulhento do clã à frente da Igreja Batista Lagoinha, postou uma montagem do rosto de Lula como dom Pedro 1º. “Dom Preso Primeiro –se for para roubar, diga ao povo que volto!”
Apontado como sucessor do bispo Edir Macedo na Igreja Universal, seu genro Renato Cardoso pediu numa live que seus seguidores orem por Bolsonaro e sugeriu que o momento é de provação. “Tudo isso aí simplesmente vai fortalecer aqueles que já são da fé. Vamos ver daqui pra frente uma distinção cada vez maior entre o bem e o mal.”
De João Vitor Ota, pregador de 13 anos com 1 milhão de seguidores no Instagram: “Infelizmente a minha geração não pode definir o futuro, mas se prepare, daqui a quatro anos, chegará a nossa vez. Glória a Deus”.
Outra parte expressiva da liderança abaixou o tom. O pastor Silas Malafaia diz que orou por Lula em culto noturno neste domingo (30), porque a Bíblia manda que todos orem pelas autoridades constituídas. Ele como pessoa física pode ser Bolsonaro, mas “a vontade soberana do povo se estabeleceu”, afirma.
O deputado Marco Feliciano seguiu trilha parecida. “Vi o discurso de Lula. Começou agradecendo a Deus. Falou de Deus em vários momentos. Reafirmou compromisso pela liberdade religiosa, evitou temas que causam divergências com o segmento evangélico e terminou agradecendo a Deus. Aprendeu a nos respeitar? Tenho dúvidas. O tempo dirá”, disse em rede social.
Depois de anos sob uma campanha bolsonarista intensa, com cismas internos que provocaram expurgo de pastores à esquerda e fuga de fiéis, as igrejas devem se reorientar para entender como marcharão sob o futuro governo Lula.
Uma coisa é certa: será muito difícil para futuros candidatos abrir mão da força política que se tornaram.
O sociólogo Paul Freston, que estuda essa parcela religiosa desde 1989, sintetizou assim o horizonte: “A cada eleição, o crescimento evangélico é um problema crônico para o campo, pois representa uma porcentagem maior do eleitorado. A dificuldade de se conectar com esse segmento implica um preço cada vez maior. Não vai ser fatal nesta eleição, mas, na próxima, volta a ser um problema, como quase foi em 2014, como foi em 2018.” E como não foi por um triz em 2022, podemos agora acrescentar.
Seria um erro da esquerda, contudo, deixar que essa predileção por Bolsonaro a afaste de vez do segmento. Há muito ressentimento de ambos os lados, e em algum momento alguém vai ter que estender a mão em busca do diálogo. Se o campo progressista se acastelar no alto de sua torre de marfim, vendo apenas fundamentalismo no lado de lá, e não uma rede complexa de quereres, quem vai perder a médio e longo prazo é ele.
Os acenos até aqui são tímidos, até atabalhoados. Lula não colocou um pastor pentecostal para falar no dia em que lançou uma carta aos evangélicos. Aliás, só se decidiu pela missiva de última hora, o que foi explorado como oportunismo eleitoral por seus detratores.
A esquerda parece se apegar a poucas e legítimas lideranças progressistas que, no entanto, falam mais para uma bolha secular do que para as igrejas. Como vai fazer para alcançar as massas crentes?
O sequestro ideológico existe, mas é um erro promover uma versão às avessas da guerra entre o bem e o mal que Bolsonaro tentou vender ao longo da campanha, com ajuda dos pastores amigos. Mais importante é tentar entender como o projeto bolsonarista conseguiu cooptar num tempo relativamente curto uma fatia tão larga do evangelicalismo nacional.
E aqui há um tanto de viés de confirmação, que atinge fiéis e líderes. É quando a pessoa dá um peso desproporcionalmente alto a tudo o que confirma o que ela já acredita, e inconscientemente desdenha evidências que contrariam suas teses. Se eu creio que Bolsonaro é o melhor para o país, e todos em volta fazem o mesmo, acabo ignorando o que possa causar fissuras nessa aparente unanimidade.
A questão armamentista é um bom exemplo. Quase nenhum desses pastores de maior expressão se anima com ela, mas ninguém vê a necessidade de se contrapor abertamente à causa agora.
Uma pastora que não morre de amores pelo presidente, ex-católica convertida há quase 25 anos, viu o bolsonarismo aflorar em todo o seu entorno. É verdade que seus colegas nunca foram petistas roxos, diz. No máximo, deixaram-se contagiar pela empolgação que tomou o segmento quando Lula chegou ao poder em 2002, rodeado de pastores que hoje o espinafram.
Uma leitura possível para o fisiologismo que norteia boa parte desses líderes é o que ela chama de síndrome do cachorro correndo atrás do caminhão de mudança. Evangélicos se sentiam vira-latas em pleitos passados, ganhando quando muito alguns biscoitos eleitorais. Fechadas as urnas, voltavam a dormir ao relento, longe do aconchego do Palácio do Planalto.
Com Bolsonaro, isso mudou. Evangélicos entraram na Esplanada, até no STF (Supremo Tribunal Federal), representados pelo pastor presbiteriano André Mendonça. Pela primeira vez, um presidente inclui em seu calendário a Marcha para Jesus, evento que atravessou três décadas e seis mandatários. O simbolismo aqui é forte. Eles sentem que alguém se importa com eles agora e acabam cegos e surdos para excessos patentes do bolsonarismo, diz essa pastora.
Se a esquerda continuar demonstrando que não está nem aí para eles, evangélicos poderão ser o fiel da balança que devolverá o país à direita bolsonarista daqui a quatro anos. Não vai dar para dizer que ninguém a avisou.